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DATA DA RECEPÇÃO: Fevereiro, 2017 | DATA DA ACEITAÇÃO: Maio, 2017
RESUMO
Este trabalho se insere na visão discursivo-desconstrutivista e tem como objetivo
problematizar a representação de Língua Portuguesa dos sujeitos haitianos moradores da
cidade de Três Lagoas. Partimos dos princípios teórico-metodológicos oriundos dos
Estudos Culturais e da Análise de Discurso da linha francesa que entre outros objetivos
busca a compreensão da produção social de sentidos. Abordamos as noções de sujeito,
discurso e formação discursiva pela leitura de Pêcheux
1
e Foucault
2
; representação, pelo
viés de Coracini
3
. Assim, por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas,
buscamos refletir sobre a representação que o sujeito haitiano faz sobre a Língua
Portuguesa. Por fim, podemos observar, por meio das análises, que no discurso dos
entrevistados perpassa a sua representação de estrangeiro com muitas restrições sociais,
a começar pela língua e é o domínio da Língua Portuguesa, principalmente, que representa
sua condição de adaptação no Brasil.
Palavras-chave: Haitiano, Língua Portuguesa, Estrangeiro.
1
Cf. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Trad. De Eni Orlandi et
alii. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
2
Cf. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
3
Cf. CORACINI, Maria J. R. F. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade: línguas (materna
e estrangeira), plurilinguismo e tradução / Maria José Coracini. - . Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
Língua Portuguesa e o discurso de sujeitos haitianos
Portuguese language and the discourse of Haitian subjects
Língua portuguesa y el discurso de los sujetos haitianos
La langue portugaise et le discours des sujets haïtiens
Renata Aparecida Ianesko
0000-0003-3879-366X
Doutora. Universidade Federal de Rondônia: Porto Velho. Rondônia. Brasil
re.ianesko@gmail.com
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ABSTRACT
This work is into the vision of desconstructivist discursive and it aims to problematize the
representation of the portuguese language of the haitian people who live in the city of
Três Lagoas. We start from the theoretical and methodological principles derived from
cultural studies and the french line of the discourse analysis, which among other
objectives seeks the social production of meanings. We approach the notion of subject,
discourse and discursive formation from the authors such as Pêcheux and Foucault;
representation from the author Coracini. Thus, through semi-structured interviews,
recorded and transcribed, we aim to reflect about the representation that the haitin subject
has about the portuguese language. Lastly, we could observe, from the analysis, that on
the discourse of the analised people there is the representation of the foreigner with some
social restrictions and they start because of the language and when they can speak the
language they, mainly, have good conditions to adapt in Brazil.
Keywords: Haitian; Portuguese Language; Foreigner.
RESUMEN
Este trabajo es parte de la mirada discursivo-deconstructivista y tiene como objetivo
problematizar la representación en lengua portuguesa de los sujetos haitianos residentes
en la ciudad de Três Lagoas. Partimos de los principios teórico-metodológicos derivados
de los Estudios Culturales y del Análisis del Discurso de la línea francesa que, entre otros
objetivos, busca comprender la producción social de significados. Nos acercamos a las
nociones de sujeto, discurso y formación discursiva leyendo Pêcheux y Foucault;
representación, a través del sesgo de Coracini. Así, através de entrevistas
semiestructuradas, grabadas y transcritas, buscamos reflexionar sobre la representación
que hace el sujeto haitiano sobre la lengua portuguesa. Finalmente, podemos observar,
através de los análisis, que en el discurso de los entrevistados se impregna su
representación de un extranjero con muchas restricciones sociales, partiendo del idioma
y es el dominio de la lengua portuguesa, principalmente, el que representa su condición
de adaptación en Brasil.
Palabras clave: haitiano, portugués, extranjero.
RÉSUMÉ
Ce travail s'inscrit dans la perspective discursive-déconstructiviste et vise à problématiser
la représentation en langue portugaise des sujets haïtiens vivant dans la ville de Três
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Lagoas. Nous partons des principes théorico-méthodologiques issus des Cultural Studies
et de l'Analyse du discours de la ligne française qui, entre autres objectifs, cherche à
comprendre la production sociale de sens. Nous abordons les notions de sujet, de discours
et de formation discursive en lisant Pêcheux et Foucault; représentation, par le biais de
Coracini. Ainsi, à travers des entretiens semi-directifs, enregistrés et retranscrits, nous
cherchons à réfléchir sur la représentation que le sujet haïtien se fait de la langue
portugaise. Enfin, nous pouvons observer, à travers les analyses, que dans le discours des
interviewés leur représentation d'un étranger avec de nombreuses restrictions sociales
imprègne, à commencer par la langue et c'est le domaine de la langue portugaise,
principalement, qui représente leur condition d'adaptation en Brésil.
Mots-clés : Haïtien; Langue Portugaise; Etranger.
INTRODUÇÃO
Este trabalho se baseia na reflexão sobre a Língua Portuguesa no discurso de um grupo
de haitianos, moradores da cidade Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Como sabemos,
a questão da emigração haitiana vem ganhando espaço a cada ano na academia por ser
um fenômeno constante e principalmente agora vem ganhando outros destinos. O Haiti,
por assim dizer, se localiza em uma das regiões mais bonitas do planeta, Mar do Caribe,
com uma população de cerca de nove milhões de pessoas e é considerado um dos países
mais pobres das Américas e Caribe. O país está localizado entre a América do Norte e a
América do Sul.
Com relação à sua história, podemos considerar que no ano de 1492, o Haiti foi
descoberto por Cristóvão Colombo e recebeu o nome de Ilha de Hispaniola. Por questões
políticas, a ilha foi dividida com a França, assim, a parte hoje denominada República
Dominicana ficou pertencendo a Espanha e França foi colônia do que viria a ser chamado
hoje de Haiti. O país, depois de uma violenta revolta dos escravos, aboliu a escravidão e
em 1801 Toussaint Louverte, um der popular e ex-escravo autodidata, tornou-se
governador geral do Haiti. Em 1804, Jacques Dessalines continua com o movimento de
resistência e declara o Haiti um país independente, no entanto, em apoio a França
escravistas americanos e europeus fazem um bloqueio naval comercial no Haiti que durou
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60 anos
4
. No ano de 1957 é instaurada a ditadura no Haiti que perdurou até o ano de 1986,
e que prejudicou ainda mais a economia do país. No entanto, mesmo com o término do
período de ditadura, o país continuou em crise econômica.
No século XX, especialmente a partir da segunda metade, assistiu-se à migração em
massa de haitianos para outros países em busca de melhores condições de vida, seja por
liberdade política e social, seja pela busca de oportunidades de trabalho ou estudos e,
nesse sentido o Brasil figura como um dos destinos da emigração haitiana na
contemporaneidade, e em especial nos referimos neste trabalho, ao contexto da cidade de
Três Lagoas, no estado do Mato Grosso do Sul, doravante MT. Isso ocorreu,
principalmente, porque em 2010, o Haiti viveu um dos mais terríveis episódios de sua
história, um terremoto que deixou mais de 1,5 milhões de desabrigados, o que fez com
que os haitianos procurassem formas de melhorarem suas vidas e um dos destinos mais
procurados foi o Brasil, país que recebeu mais de 38,000 haitianos que entraram sem
documentos ou visto.
O contexto desta pesquisa é atravessado pelas relações de poder e, por isso, é importante
dar relevância a essa questão. Acreditamos, assim que os haitianos, por estarem no Brasil,
em busca de melhores condições de vida, constituem sua subjetividade numa constante
arena de luta.
Assim, esse trabalho tem como objetivo principal refletir sobre a representação da
identidade dos sujeitos haitianos do município de Três Lagoas, inseridos em um processo
de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa como língua estrangeira a partir da
perspectiva discursiva e do processo de referenciação linguística.
Por intermédio de uma análise linguístico discursiva pretendemos observar como os
dizeres de haitianos, aprendizes de português, significam em uma determinada situação
discursiva e como se articulam para a produção de sentidos.
Utilizaremos a metodologia discutida por Foucault
5
, em que recorreremos à aplicação de
entrevistas semiestruturadas aos alunos-adultos haitianos. São alunos regularmente
matriculados em um curso formal de Português para haitianos que foi iniciado em 2014
4
LOUIDOR, W. E. Uma história paradoxal. IN. Haiti por si: a Reconquista da independência roubada.
Adriana Santiago (Org.) Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013.
5
Cf. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008, p. 147.
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na escola Elson Lot Rigo no município de Três Lagoas no estado do Mato Grosso do Sul.
Partimos dos princípios teórico-metodológicos oriundos da Análise de Discurso (AD) da
linha francesa que, entre outros objetivos, busca a compreensão da produção social de
sentidos.
Com relação às entrevistas optamos por realiza-las em Língua Portuguesa por concordar
que o sentido depende, entre outras questões, das condições de produções e como
acreditamos que o discurso é definido por meio de enunciados construídos por formações
ideológicas, talvez conseguiremos refletir sobre o discurso do sujeito haitiano de forma
singular, interpelado pelas ideologias que o rodeiam.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Partimos da perspetiva que a Análise do Discurso, doravante AD, é o lugar privilegiado
de manifestação da ideologia” de acordo com Brandão
6
. Por isso, acreditamos que para
refletir questões referentes à identidade dos haitianos pesquisados seja importante nos
basearmos na metodologia teórica da AD, a qual tem como objeto de estudo o discurso e
não a língua e o texto é analisado e não o signo ou a frase. Assim, p3 46ra Orlandi
7
o
texto na AD é considerado “não em seu aspecto extensional, mas qualitativo, como
unidade significativa da linguagem em uso, logo unidade de natureza pragmática”.
Dessa maneira, essa metodologia de análise pressupõe um estudo que observe a
materialidade discursiva, pois para Pêcheux
8
, a língua seria um lugar em que os efeitos
de sentido são realizados. Consideramos, nessa perspectiva, que é possível haver a
desconstrução nos discursos, ou seja, não apenas um sentido para cada discurso e a sua
interpretação dependerá dos âmbitos sociais ao qual ele foi pronunciado. Segundo
Orlandi,
9
“a análise do discurso como seu próprio nome indica, não trata da língua, não
trata da gramática embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a
6
Cf. BRANDÃO, H. H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 3ª. ed. rev. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2012, p. 11.
7
Cf. ORLANDI, E. P. A análise do discurso: algumas observações. D.E.L.T.A., vol., nº1. São Paulo, fev.
1986. p. 107.
8
Cf. PECHEUX, Op. Cit.
9
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 8. Ed. Campinas: Pontes, 1999. p. 15
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palavra etimologicamente tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr, de
movimento”. Para Faucault
10
, o discurso possui esse caráter de não fixidez quando fala
sobre a problematização do linguístico com o histórico social, da descontinuidade, do
descentramento, e do processo diaspórico dos sentidos.
Assim, segundo Indursky
11
“a AD pressupõe a linguística, mas não se limita a ela”. Na
AD, a linguagem seria um produto sócio-histórico e não um sistema abstrato, no qual os
sentidos não são estáveis e transparentes ou fixos, e sim construídos socialmente em
determinado período histórico, por isso a linguagem não é um produto acabado, mas sim
um processo em construção. Nos basearemos na teoria de Foucault
12
quando afirma que
o discurso é um conjunto de enunciados, os quais se apoiam em uma mesma área de
conhecimento, podendo ser eles o “discurso clínico, discurso econômico, discurso da
história natural, discurso psiquiátrico” e todos os demais discursos de um mesmo sistema
de formação.
E também de Pêcheux
13
quando fala sobre o processo de re-inserção do discursivo, dos
efeitos de sentidos e ainda com o processo histórico no cenário da linguagem, o sujeito
emerge como ponto principal, pelo viés da memória intradiscursiva.
O sujeito para a AD é o sujeito do discurso, social, pois não é apenas um reprodutor de
arranjos. No entanto, esse sujeito, ilusoriamente, acredita ser o dono de suas palavras e
também acredita que determina seu dizer, nos referindo aos esquecimentos de Pêcheux
(1988) e para ele “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes pelas formações
ideológicas que lhes são correspondentes”.
14
Partiremos de dois pressupostos, o primeiro é com relação a constituição da identidade
dos haitianos pesquisados, os quais são afetados pela alteridade e pela diferença e o
contato com o brasileiro, o que provoca neles um estranhamento, responsável pela forma
como eles representam a si próprios e ao outro.
O segundo pressuposto é a conceção de sujeito, o qual é multifacetado, clivado,
heterogêneo, cuja constituição histórica o leva a ser atravessado por discursos outros e
10
Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 12. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2005.
11
Cf. INDURSKY. F. A Fala dos Quartéis e as Outras Vozes. Campinas: Unicamp, 1997. p. 17.
12
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,
Vozes, 1987, p. 122.
13
Cf. PÊCHEUX. Op. Cit.
14
Cf. PÊCHEUX. Op. Cit., p. 161.
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interpelado ideologicamente
15
. Ou seja, o discurso dos haitianos, assim como todos os
outros, é constituído por enunciados de outros discursos, pois o sujeito não é uno, coeso,
mas é atravessado por uma heterogeneidade de discursos que o constitui. Para Pêcheux
16
[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc, não existe ‘em si mesmo’
(isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é
determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as
palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).
Assim, buscaremos fazer uma análise com base na conceituação de Pêcheux sobre
ideologia, que é baseada no livro de Althusser “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do
Estado” (1974) no qual ele discute como os aparelhos ideológicos como escola, família e
prisão interferem nas práticas sociais, pois o sentido das palavras não é fixo e nem existe
em si, mas é constituído pela interpelação ideológica do indivíduo que o torna um sujeito
ideológico.
Com relação às representações de identidades, Hall
17
explica que:
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade
tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente
em processo de mudança e transformação.
Assim, para os estudos culturais, o conceito de identidade pressupõe movimento, algo em
construção, ou seja, o conceito passa a ser interpretado como identificação e vai ao
encontro da perspectiva desconstrutivista de Derrida, na medida em que aponta a
identidade como um conceito que acontece ‘sob rasura’. Sendo assim, para Hall
18
,
existem múltiplos deslocamentos identitários, deslocamentos esses que acontecem em
diferentes momentos da vida do sujeito.
ANÁLISE DISCURSIVA
15
Cf. PÊCHEUX. Op. Cit.
16
Cf. PÊCHEUX. Op. Cit., p. 160.
17
Cf. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrópolis, 2000, p. 108.
18
Cf. Ibid.
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Esta pesquisa tem como objetivo fazer a análise de trechos de uma entrevista de um
haitiano integrante da turma de Português destinados a haitianos em uma turma formal
no município de Três Lagoas MS e é baseado no pressuposto de referenciação como
atividade discursiva e na Análise de Discurso de linha francesa.
No seguinte excerto o aluno haitiano fala sobre as vantagens e o motivo pelo qual se
mudou para o Brasil:
SA1: eu acho (no Brasil mais fácil) porque tem pra fazer Enem... se você tem boa (nota) é fácil ...
tem muitas possibilidades pra fazer faculdade aqui... (...) eu já fezê/ inscrição vou tentar...
(...)porque aqui você/um jovem pode trabalhar de manhã... estudar ainda tarde e noite... e no Haiti
vai ser difícil para trabalhar e estudar também... se é estudar só... trabalhar só... porque jovem que
estuda lá no Haiti é os pais que paga tudo pra ele...
Observamos que no trecho do aluno existem duas anáforas que remetem ao mesmo
referente, a primeira quando o aluno utiliza o termo “aqui” e segunda com o mesmo
termo, o que coloca o referente novamente em foco, numa recuperação do termo “Brasil”.
Encontramos também a afora indireta “ele” se referindo ao termo anterior “jovem”, o
qual tem como objetivo introduzir um novo referente e dar continuidade ao texto, segundo
Marcuschi
19
. Podemos notar que o efeito de sentido principal diz respeito às facilidades
encontradas no Brasil, principalmente relacionadas às oportunidades de trabalho e estudo
ao mesmo tempo.
Quando perguntado se acredita que é possível viver bem no Haiti, o aluno responde:
SA1: Sim... tem que fazer faculdade... ter profissão pra trabalhar... pra ocupar toda sua família...
no Haiti... pessoa que trabalha/ homem - - tem espoSA quase não trabalha... é hoMEM que
quase fazer tudo... paga aluguel... fazer comPRA/... ele trabalha para cuidar da sua família... (toda)
família
Para Foucault
20
, todos nós estamos atravessados por preceitos, memórias, possíveis
verdades e ideologias ancoradas em filosofias positivistas, e que o homem está enredado
nas limitações que a inscrição social lhe impõe. Ou seja, parece que para este aluno é
importante seguir essa questão cultural do seu país e para isso, é necessário fazer uma
faculdade, o que o permitiria viver “bem” no Haiti.
19
MARCUSCHI, L. A. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In: KOCH, I. V., MORATO, E.
M.; BENTES, A. C. (orgs.) Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 58.
20
Cf. Id. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
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Acreditamos que pelo aluno haitiano estar imerso na cultura e língua brasileira, torna-se
possível observar questões sobre sua própria cultura e identidade, pois segundo
Grigoletto
21
o próprio processo de aprendizagem de uma língua estrangeira propicia o
estranhamento, que o contato com a nova língua e cultura causa o retorno do olhar
sobre si mesmo e sobre a sua cultura. Esse movimento de retorno instaura o espaço da
diferença, significando que a própria representação de si é afetada pela comparação com
o outro (o estrangeiro ou a língua estrangeira). Assim, o aluno ao responder o
questionamento explicando como é no seu país, passa a refletir e se mostra preocupado
em seguir o enredo vivido no Haiti objetivando retornar ao lugar de origem para poder
realizar a inscrição social que lhe é imposta que no caso é ser o responsável por “trabalhar
para cuidar de sua família”.
Na pergunta sobre como o aluno acredita que o brasileiro o vê, o entrevistado responde:
SA1: boa questão... tem ( ) o jeito diferente... tem pessoa que me vê como pessoa que não sabe
nada::: que não tem educação... quando ele - - se eu fui no emprego eu manda pra trabalhar... me
dão folha pra preencher - - quando ele eu escrever assim - - ele você sabe escrever? Sim:::
porque eu tenho muita facilidade pra aprender a língua... e (ainda) quanto tempo você tem aqui?
quando eu falo ele - - oh você aprende muito...
Assim, percebemos que o aluno nos conduz a entender que momentos em que sofre
preconceito como observamos na frase “tem pessoa que me vê como pessoa que não sabe
nada”. No entanto, quando o aluno foi perguntado se considera ser excluído, ele responde
que não. Ou seja, há a denegação de que seja excluído, assim, de acordo com Indursky
22
“na teoria psicanalítica, através da negação, o sujeito pode mascarar aquilo que, por ter
sido censurado pelo superego e recalcado no inconsciente, não lhe é facultado dizer. Ou,
se preferirmos seria através da denegação que o sujeito diz sem, de fato, dizer,
apresentando-se dividido entre seu desejo de dizer a sua necessidade de recalcar. E a
denegação possibilita a verbalização dessa divisão, pois o sujeito, ao formular o recalcado
negativamente, pode expressá-lo sem, contudo, admiti-lo.
21
Cf. GRIGOLETTO, M. Língua e identidade: representações da língua estrangeira no discurso dos
futuros professores de língua inglesa. In: GRIGOLETTO, M. & CARMAGNANI, A. M. G. (org.) English
as a foreign language: identity, practices and textuality. São Paulo: Humanitas, 2001, p. 138.
22
Cf. INDURSKY. F. Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da negação. In: Cadernos
de Estudos Linguísticos, nº 9, Campinas: Unicamp, 1990, p. 118.
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Para Sawaia
23
“a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de
dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É um processo sutil e dialético,
pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela”.
Quando perguntado o que acha da Língua Portuguesa, o sujeito haitiano responde:
SA2: para mim português não é TÃO::: difícil... porque eu já sabia faLA: espanhol... o espanhol e
o português é muito parecidos... é filha e mãe... mas são diferentes... é filha e mãe... a mãe vai ser
mais velha néh:::... pode ser até parecido muito... é essa a diferença, por isso para mim o português
não é tão difícil... o problema é esse... quem já fala espanhol e fala BEM o espanhol... no momento
em que vai falar português... vai querer entrar palavras espanholas... o que é normal porque é muito
parecido (...)
Assim, notamos que ao considerarmos o Português como uma língua estrangeira, o fato
do aluno já dominar o idioma espanhol torna a aprendizagem da língua portuguesa mais
fácil.
Outro aluno, ao ser perguntado sobre a mesma questão, responde:
SA3: difícil... não vou falar... porque eu não fui pra escola... eu não especializei em nenhum lugar...
mas eu estou falando português agora em menos de três anos
Acreditamos que pelo motivo do aluno haitiano estar imerso na língua e cultura brasileira,
torna-se possível observar questões sobre sua própria cultura, pois segundo Grigoletto
24
,
o próprio processo de aprendizagem de uma língua estrangeira propicia o estranhamento,
que o contato com a nova língua e cultura causa o retorno do olhar sobre si mesmo e
sobre a sua cultura. Esse movimento de retorno instaura o espaço da diferença,
significando que a própria representação de si é afetada pela comparação com o outro (o
estrangeiro ou a língua estrangeira). Nesse contexto, a comparação é feita baseada nas
línguas que os haitianos já conhecem. Sendo assim, os idiomas português e espanhol são
considerados parecidos o suficiente para ajudarem aos haitianos na comunicação básica
tanto para os que acabam de chegar como também para os que moram no Brasil por
algum tempo, pois o espanhol, nesse caso, se torna uma importante base para os haitianos
que já falam a língua portuguesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
23
Cf. SAWAIA, B. Uma ideologia separatista? In: SAWAIA, Bader (org). As artimanhas da exclusão:
análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 9.
24
Cf. Op. cit., p. 138.
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Com a observação dessas entrevistas percebemos que, apesar do aluno presenciar certo
preconceito em seu dia a dia, talvez queira descrever essa situação de forma não negativa,
negando que seja excluído, mas entendendo que algumas vezes vai enfrentar situações de
preconceito.
Outra questão diz respeito à sua identidade, que nesse momento, talvez indique seu
sentimento de pertencimento, porque, por estar em condição de diáspora por motivos
principalmente financeiros, uma busca constante em conseguir demonstrar que sua
cultura e características sociais são muito parecidas com a cultura brasileira, tornando-o
similar ao brasileiro e, portanto, demonstrando possuir a ideia de que esteja incluído
socialmente. O que indica, todavia, que o objetivo pelo qual veio para o Brasil seja de
caráter provisório, visto que o objetivo principal e final, talvez seja poder retornar para
viver “bem” no Haiti.
Como hipótese de trabalho, partimos do pressuposto de que os sujeitos haitianos estão em
um contexto de marginalização e estereotipação. Assim, talvez seja possível identificar,
pelos recortes selecionados dos entrevistados, que a representação de identidade dos
haitianos traz uma tentativa de ressignificação identitária de uma forma geral na
sociedade brasileira por parte dos sujeitos, os quais buscam constantemente uma
aprovação social, confirmando nossa hipótese. Assim, essa aprovação social seria
facilitada quando o domínio da língua vigente do país, no caso o Português. Por fim,
podemos observar, por meio das análises, que no discurso dos entrevistados perpassa a
sua representação de estrangeiro com muitas restrições sociais, na qual a língua tem papel
fundamental.