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DATA DA RECEPÇÃO: Janeiro, 2018 | DATA DA ACEITAÇÃO: Maio, 2018
Resumo
O presente trabalho procurou desconstruir, a partir das teses de Frantz Fanon, sobretudo
aquelas formuladas nos “Condenados da Terra”, a ideia de uma suposta missão
civilizadora subjacente na intenção colonizadora consubstanciada na equação
“colonização igual a civilização e paganismo igual a selvageria”. Partindo de uma
indagação da validade criticável da equação em epígrafe, cruzou os factos às doutrinas
que versam sobre o fenómeno da colonização de África, e chegou a depreender, com uma
certa objectividade, de que a colonização em África, tal ficou visto por Fanon, foi mais
um movimento de despersonalização e de coisificação dos africanos em geral e, dos
negros, em particular do que um projecto de humanização e de emancipação dos
indígenas de África negra. Ficou, portanto evidente, ao longo deste trabalho, de que a
colonização foi uma violência que extraiu a sua originalidade na substantivação do
colonizado. Uma violência que, não só, presidiu ao arranjo do mundo colonial, como
também, ritmou e alimentou a destruição antropológica e ontológica do negro-africano,
incluindo todas as suas formas sociais; arrasou completamente os seus sistemas de
referências económicas, os seus modos “essendi et operandi” e decretou a crise sócio-
cultural dos povos negros de África.
Palavras-chaves: colonização, civilização, violência, despersonalização,
descolonização, emancipação.
A colonização, uma referência historicizante do discurso sobre a descolonização de áfrica: uma
provocação filosófica a partir de Frantz Fanon
Colonization, a historicizing reference in the discourse on the decolonization of africa: a philosophical
provocation from Frantz Fanon
La colonización, una referencia historizadora del discurso de la descolonización de áfrica: una
provocación filosófica de frantz fanon
La colonisation, une référence historicisante du discours sur la décolonisation de l'afrique : une
provocation philosophique de frantz fanon
Nlandu Matondo Faustino
0000-0001-9626-493X
Mestre. Universidade Católica de Angola. Luanda. Angola
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Abstract
The present study sought to deconstruct, from the theses of Frantz Fanon, especially those
formulated in "The Wretched of the Earth”, the idea of a supposed civilizing mission
underlying the colonizing intention embodied in the equation "colonization equal to
civilization and paganism equal to savagery”. Crossed the facts to the doctrines that focus
on the phenomenon of colonisation of Africa, this was seen by Fanon, was more a
movement of depersonalization of Africans in general, and the negroes, in particular than
a draft of humanization and emancipation of the peoples of black Africa. Therefore
became evident throughout this work, that the colonization was a violence that drew its
originality of the colonized.
A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world, as well as
marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African,
including all its social forms; wiped out completely their systems of economic references,
their modes "essendi et operandi" and decreed the socio-cultural crisis of the black people
of Africa.
Key words: colonization, civilization, violence, depersonalization, decolonisation,
emancipation.
Resumen
El presente trabajo pretendía deconstruir, a partir de las tesis de Frantz Fanon,
especialmente las formuladas en "Condenados de la Tierra", la idea de una supuesta
misión civilizadora subyacente a la intención colonizadora plasmada en la ecuación
"colonización es igual a civilización y paganismo es igual a salvajismo". Partiendo de una
indagación sobre la validez crítica de la ecuación en cuestión, cruzó los hechos con las
doctrinas que abordan el fenómeno de la colonización de África, y llegó a la conclusión,
con cierta objetividad, de que la colonización en África, tal como la veía Fanon, era más
un movimiento de despersonalización y cosificación de los africanos en general, y de los
negros en particular, que un proyecto de humanización y emancipación de los pueblos
indígenas del África negra. Por tanto, a lo largo de este trabajo se ha puesto de manifiesto
que la colonización fue una violencia que extrajo su originalidad en la sustanciación del
colonizado. Una violencia que no sólo presidió el ordenamiento del mundo colonial, sino
que también ritmó y alimentó la destrucción antropológica y ontológica del negro-
africano, incluyendo todas sus formas sociales; aniquiló por completo sus sistemas de
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referencias económicas, sus modos "essendi et operandi", y decretó la crisis sociocultural
de los pueblos negros de África.
Palabras clave: colonización, civilización, violencia, despersonalización,
descolonización, emancipación.
Résumé
Le présent article a cherché à déconstruire, sur la base des thèses de Frantz Fanon,
notamment celles formulées dans "Les condamnés de la terre", l'idée d'une supposée
mission civilisatrice sous-jacente à l'intention colonisatrice incarnée par l'équation
"colonisation égale civilisation et paganisme égale sauvagerie". Partant d'une enquête sur
la validité critique de l'équation en question, il a croisé les faits avec les doctrines qui
traitent du phénomène de la colonisation de l'Afrique, et est arrivé à la conclusion, avec
une certaine objectivité, que la colonisation en Afrique, telle que vue par Fanon, était plus
un mouvement de dépersonnalisation et d'objectivation des Africains en général, et des
Noirs en particulier, qu'un projet d'humanisation et dmancipation des peuples
autochtones d'Afrique noire. Il est donc apparu tout au long de ce travail que la
colonisation était une violence qui tirait son originalité de la substantivation des colonisés.
Une violence qui a non seulement présidé à l'aménagement du monde colonial, mais aussi
rythmé et alimenté la destruction anthropologique et ontologique du noir-africain, y
compris toutes ses formes sociales, a complètement effacé ses systèmes de références
économiques, ses modes "essendi et operandi", et a décrété la crise socioculturelle des
peuples noirs d'Afrique.
Mots clés: colonisation, civilisation, violence, dépersonnalisation, décolonisation,
émancipation.
Introdução
A reflexão em torno dos desafios da descolonização em África continua actual e actuante
em qualquer discurso intelectual ou político sobre o estado da nação de muitos Estados
africanos, passados que são, aproximadamente, seis décadas desde que muitos deles se
tornaram independentes. Esta actualidade pode, todavia, não parecer evidente quando o
enfoque do discurso for a colonização. De facto, pode parecer anacrónico e mesmo
sintomático falar da colonização para tentar justificar, a qualquer preço, o
subdesenvolvimento e a instabilidade sociopolítica, na actualidade, de muitos Estados
africanos independentes. Bom ou malgrado, essa sensação de anacronismo que sugere
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uma espécie de époké, em torno do fenómeno colonial, perde a sua legitimidade na
medida em que a pertinência do discurso sobre a descolonização de África torna, “ipsis
verbi”, procedente o discurso sobre a colonização. Ou seja, toda a fala em torno da
descolonização sugere, de uma ou de outra forma, uma incursão sobre a colonização.
Vamos, ao longo deste trabalho, procurar descortinar o conceito de colonização na
tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do trampolim que pode
sugerir à nossa cogitação sobre a descolonização. Para o efeito, propomos a seguinte
estrutura: 1. Em busca do justo significado do conceito de colonização a partir da analítica
de Fanon; 2. Indagando sobre a validade criticável da equação colonização igual a
civilização; 3. Do entendimento teórico dos conceitos em análise a uma possível dedução
da sua correlação; 4. Da análise de algumas doutrinas e factos a uma possível verificação
da equação de partida; 5. A colonização como projecto de modernização de África:
clarividência ou equívoco? 6. Desconstruindo o mito de uma civilização humanista,
erguida na recusa do humano enquanto diferente; 7. A compartimentação maniqueísta do
mundo colonial uma antítese à pretensão de uma suposta missão emancipadora dos
africanos subjacente na intenção colonizadora.
1. Em busca do justo significado do conceito de colonização a partir da sua
analítica em Fanon
Não é possível falar da descolonização em Fanon, sem falar da colonização, enquanto
referência inofuscável e movimento historicizante que confere corpo e sentido, matéria e
forma a qualquer análise crítica do projecto de descolonização de África. Esta é, de resto,
a lógica que suporta o argumento de Fanon, que passamos a transcrever:
a descolonização […] é um processo histórico […], não pode ser
compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna
transparente para si mesma, senão na exacta medida em que se faz
discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo
a opressão colonial. (Fanon, 1968, p. 26 ou Fanon, 2002, p. 452).
Desde esta perspectiva, a análise sobre a colonização ganha uma particular relevância, na
medida em que se nos apresenta, não só, como fundamento a partir do qual se pode erguer
qualquer avaliação sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleológico
da luta dos africanos, rumo à sua efectiva emancipação e reintegração no universalismo
humano, mas, também, como pretexto para (re) pensar o caminho de superação das novas
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formas de colonização que grassam ainda África e que, em si, constituem um verdadeiro
impasse para uma descolonização efectiva do continente africano. Importa, desde já,
sublinhar que esta reflexão de tipo histórico não encontra o seu real significado na
descrição dos factos que ela encerra, nem na narração histórica que a constitui. O seu real
alcance reside na sua capacidade de sugerir um conjunto de questionamentos em torno
deste grande desiderato a descolonização vislumbrado pelos africanos, passados que
são cinquenta e sete anos, após a morte de Fanon.
Tem-se, com efeito, e o poucas vezes, associado a colonização de África a um projecto
civilizador ou modernizador que terá sido frustrado ou interrompido por uma espécie de
ambição irracional dos africanos, admitindo-se, deste modo, a hipótese segundo a qual a
colonização terá sido um “projecto interrompido” de civilização (modernização) da
África e dos africanos. De recordar que o “discurso sobre o colonialismo” de Aimé
Césaire resulta, precisamente, da necessidade de dissertar sobre uma possível analogia
entre a “colonização e a civilização”. Provocação ou não, mas o simples facto de lhe ter
sido solicitado discorrer sobre o binômio colonização-civilização pelo Franco-Senegalês
Alioune Diop, fundador e Director da Revista “Présence Africaine” em Paris, 1950,
insinua a existência de tendências que aproximavam a colonização à civilização. Esta
provocação, tal como nos parece ser, não deixa de ser, no plano metodológico, um bom
ponto de partida para uma discussão mais objectiva e crítica da concepção fanoniana do
colonialismo, porquanto nos permite lançar a discussão levantando uma série de
perguntas, tais como: 1. É possível sustentar, por via de argumentação, uma provável
analogia entre os dois conceitos em análise, a saber: colonização e civilização? 2. Terá
havido, realmente, um plano colonial de civilizar ou modernizar a África em proveito dos
africanos? 3. Era sensato legitimar a opressão colonial a partir dos progressos alcançados
nas colónias de África durante a administração colonial? Dito de outro modo Será que
os níveis de desenvolvimento conseguidos em vários domínios: social, administrativo,
tecnológico e político, sob o regime colonial, conferiam, efectivamente, a merecida
dignidade a África e aos africanos? 4. Terá a África, realmente, recusado o
desenvolvimento, como diria Axel Kabu, ao engajar-se na luta pela descolonização? 5. E
hoje, em plena era pós-colonial, poderão os africanos afirmar, com realismo, franqueza e
frontalidade, que os ideais que nortearam o projecto da descolonização foram alcançados?
6. Terá alguma razão de ser o postulado, segundo o qual, o projecto de descolonização
terá sido abortado, na sua menor idade, admitindo-se, deste modo, um possível equívoco
entre os líderes e os intelectuais africanos que terão confundido as independências
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(enquanto meio) com a descolonização (enquanto fim da longa marcha, usando a
expressão de René Dumont, rumo a um continente mais humano, mais livre, mais
autónomo, mais justo, e mais próspero)?
Ao longo desta reflexão, tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas
perguntas, tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon.
2. Indagando sobre a validade criticável da equação colonização igual à civilização
Qual terá sido o verdadeiro retrato do colonialismo: um processo de civilização dos
chamados indígenas ou um “movimento de despersonalização e de coisificação” dos
povos africanos? É evidente que, para Fanon, esta questão nem sequer merece ser
colocada. De facto, o jovem martinicano é bastante incisivo e objectivo na sua análise.
Para ele, a colonização é, antes de mais, uma “violência”, conceito que, de resto, tulo
ao capítulo do Les Damnés de la Terre (Fanon, 1968, p.23 ou 2002, p.448). Na sua
óptica, a violência foi, precisamente, o elemento estratégico e estruturante da lógica
colonial. Trata-se de uma violência que extrai sua originalidade na substantificação do
colonizado que a própria situação colonial segrega e alimenta. Aliás, o encontro entre o
colonizador e o colonizado, diz Fanon, teve sempre o retrato de violência e nunca foi
expressão de uma vontade civilizadora ou humanizadora. Pode se ler em Fanon que a
colonização é a categorização de um encontro que
se desenrolou sob o signo da violência e sua coabitação ou
melhor, a exploração do colonizado pelo colono foi levada a
cabo com grande reforço de baionetas e canhões […] A
violência […] presidiu ao arranjo do mundo colonial, […]
ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais
indígenas, […] arrasou completamente os sistemas de
referências da economia, os modos da aparência e do vestuário
do colonizado (Fanon, 1968, pp. 26 e 30).
É possível aproximar, em boa verdade, uma situação de uma clara alienação
antropológica, fazendo à descrição de Fanon, a um projecto de civilização, sem cair
em sofismas que desemboquem numa contradição? De notar que este mesmo
entendimento de Fanon é corroborado pelo seu antigo mestre, Aimé Césaire, que
parafraseamos nos seguintes termos: a colonização, enquanto violência, no sentido mais
bruto da palavra, é uma autêntica antítese da civilização, ela, por natureza, desciviliza,
simultaneamente, o colonizador e o colonizado. A colonização legitima o ilegítimo e
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normaliza o anormal: pode-se matar, à vontade, na Indochina, torturar em Madagáscar,
prender na África negra, seviciar nas Antilhas… (cfr. Césaire, 1978, pp. 7 e 14). Não é
preciso muita hermenêutica para apreender nos dizeres de Sartre de que a violência
constitui o “modus operandi” próprio do sistema colonial que nem as suas geniais trapaças
conseguem disfarçar. A peculiaridade do agir colonial distancia a colonização da
civilização. E para deixar tudo a nu, Sartre faz a seguinte inconfidência:
“nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano,
aplicam ao género humano o numerus clausus; uma vez que ninguém
pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles
dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa
tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata
em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao
nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como
bestas de carga […] nada deve ser poupado para liquidar as suas
tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua
cultura sem lhes dar a nossa…” (Sartre, Les Damnés, 1961, p 9)
Esta violência que parte do plano simbólico conceitual atingiu o seu ponto auge com
desterramento dos indígenas feitos estrangeiros na sua própria terra, como foi o caso do
código civil imposto aos argelinos, visando regular o direito à propriedade e à herança
com a única finalidade de desterrar os autóctones, tirando-lhes o que de mais precioso
tinha a sua própria terra. De realçar que o referido código tinha aprovado a titularidade
comum de terras entre a classe-média francesa e a sociedade tribal, como estratégia de
expropriação de terras aos autóctones, através de políticas especulativas. (cfr. Sartre,
1967, p.39).
Desde este ponto de vista pode-se aferir que os “modus essendi et operandi” do
colonialismo configuravam, em certa medida, aquilo que Sartre chamou de “imoralidade
narcisista” da ambição ocidental da qual emerge o impulso que modifica,
inevitavelmente, qualquer indivíduo que adere à dinâmica colonial, dando-lhe boa
consciência e boas razões de ver no outro (não branco) um simples animal. Esta
constatação sartriana valida, sem qualquer sombra de dúvida, a convicção de Césaire para
quem o colonialismo é brutalidade, intimidação, crueldade, sadismo, choque, violação,
roubo, desprezo, culturas obrigatórias, desconfiança, massas aviltadas, ausência de
contacto humano, relações de dominação e de submissão que transformam o negro
colonizado em criado, ajudante, comitre e instrumento de produção (cfr. Césaire, 1978,
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p.25). A partir destes pressupostos torna-se, de facto, forçoso concluir que não existe, tal
como defende Fanon, qualquer sustentabilidade, quer argumentacional, quer factual para
a validação da equação “colonização igual à civilização”, pois os factos atestam que
colonização é o oposto de civilização. Mas uma démarche etimológica dos conceitos pode
sugerir um outro entendimento que no plano teórico conceitual aproxima os dois
conceitos em abordagem.
3. Do entendimento teórico dos conceitos em análise a uma possível dedução da sua
correlação
Para fundamentar, com maior objectividade, o alcance da dedução decorrente da narrativa
de Fanon em relação a conjecturada correlação entre os dois conceitos em análise,
pareceu-nos mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos, no sentido de
os tornar mais inteligíveis para, daí, depreender o seu justo significado e,
consequentemente, confirmar ou infirmar a suposta correlação entre ambas. Convém, no
entanto, sublinhar que o carácter polissémico dos conceitos em epígrafe não nos permite
ignorar o facto de que não é tão fácil, quer do ponto de vista conceitual, quer do ponto de
vista factual, traçar a linha de convergência ou de divergência entre eles, pois o próprio
carácter multidisciplinar que o conceito de civilização envolve, hoje, confere-lhe uma
enorme complexidade que dificulta qualquer entendimento homogéneo, linear e
conclusivo. Acresce-se a este dado o facto de que, nos dias que correm, o conceito de
civilização é reivindicado como objeto de estudo da antropologia, da ciência, da cultura,
do direito, da história, da filosofia política, da sociologia política, da religião, etc.,
proporcionando-lhe um enquadramento epistémico bastante complexo que recusa
qualquer unicidade semântica. No entanto, um recuo estratégico e metodológico ao século
das luzes, onde o significado do termo “civilização” emergiu da própria raiz etimológica
do conceito “civilis”, “civis” cujo entendimento remetia à acção de tornar civil ou
urbano, pode permitir uma espécie de unidade de sentido a partir do qual se pode
fundamentar a possível analogia conceitual destes dois termos.
A Enciclopédia Luso Brasileira da Cultura não foge muito desta percepção quando define
a colonização como um fenómeno sociopolítico baseado na dependência de um grupo
humano ou de um território a um outro que exerce nele influências demográficas,
económicas, culturais, sociais ou políticas. Entendimento à luz do qual alguns teóricos,
nos séculos XIX e XX, basearam a sua definição de colonização como atividade pela qual
um povo de cultura superior ocupa e organiza, por conta própria, um território habitado
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por povos de cultura inferior, estendendo a sua soberania, desfrutando do solo e
organizando as terras ocupadas, segundo o princípio da civilização. Observa-se, aqui, a
missão civilizadora subjacente ao conceito da colonização, enquanto fenómeno
sociopolítico, cuja meta é levar as colónias ao desenvolvimento cultural, social,
económico e científico, ou seja, à modernização do território ocupado. Este é, de resto, o
significado que decorre do entendimento filológico do conceito de colonização cuja
estrutura originária se funda em torno de dois pressupostos basilares, nomeadamente: o
cultivo da terra, isto é, o desenvolvimento económico, e o cultivo dos homens, ou seja, a
promoção sociocultural e económica das populações consideradas na posição receptiva
(cfr. Enciclopédia Luso Brasileira da Cultura, nº5, p.996ss).
De salientar que o conceito de civilização emergiu, e muito provavelmente, antes de
qualquer outro país, no contexto sociocultural francês e fazia referência, essencialmente,
a três dimensões que vale a pena enumerar: a primeira era referente ao primado da vida
em comunidade sobre a vida solitária; a segunda fazia alusão ao primado da vida na
cidade sobre a vida no campo; a última reportava-se ao primado do homem polido pela
cultura sobre o selvagem, isto é, o homem moderno distinguido pela ciência e pela
técnica, sobre o rbaro (cfr. Enciclopédia LB da Cultura, nº5). Neste contexto teórico-
conceitual, civilizar era, de facto, sinónimo de trabalhar na integração dos indígenas na
comunidade metropolitana, na modernização da vida do campo, isto é, levando as
condições da cidade ao campo (energia eléctrica, água potável, educação escolar,
assistência médica e medicamentosa…) e na polição do bárbaro pela chamada “cultura”,
científica e tecnológica.
Este parece ser o entendimento mais viável para o exame a que nos propusemos, da
correlação destes dois vocábulos. O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e
sustentabilidade epistémica no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea,
editorial Verbo, acresce, ainda mais, o nosso interesse por esta perspectiva (cfr. 2001,
p.833). Segundo o Dicionário, ora referenciado, a “civilização” é a acção ou o resultado
de transmitir conhecimentos, comportamentos e técnicas consideradas desejáveis numa
sociedade moderna. Por conseguinte, civilizar é dar características próprias de sociedades
técnicas, científica e economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas; ou, ainda,
dar hábitos e ajudar a desenvolver comportamentos desejáveis numa sociedade
desenvolvida. Conclui-se, pois, que, do ponto de vista conceitual ou definicional, existem
razões para fundamentar a presumível correlação entre os conceitos de “colonização e
civilização”. Mas a não homogeneidade de compreensão na interpretação e aplicação
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destes conceitos, à partida, polissémicos e multidisciplinares, e o seu claro antagonismo
factual evidenciado nas descrições fanonianas, obrigam-nos a dar um passo a mais,
espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e continuam a marcar o discurso
sobre o colonialismo.
4. Da análise de algumas doutrinas e factos à uma possível verificação da equação
de partida
Se é possível aferir, do ponto de vista definicional, uma certa correlação analógica entre
os conceitos que fundam a nossa equação de partida, tal como ficou patenteado no ponto
anterior, do ponto de vista doutrinal e factual, esta correlação carece de uma análise
minuciosa que permita apurar se a propensão civilizadora inerente ao conceito de
colonização, pelo menos no plano teórico-conceitual, conseguiu vincar como aspecto
norteador da acção colonial, ou terá, por alguma razão, ficado ofuscada durante o
processo colonial. Impõe-se-nos, a este nível, retomar o ponto de vista de Fanon, para
quem a colonização é, antes de mais, uma violência que se consubstancia na animalização
e na aniquilação dos (negros) colonizados. Para sustentar o seu argumento, Fanon começa
por relembrar a atitude do colono que, em rias circunstâncias, fez recurso a “uma
linguagem zoológica, usando expressões como: “[…] hordas, fedor, bulício […] e quando
os quisesse descrever com mais exatidão […] recorria constantemente ao bestiário” para
designar os negros (Fanon, 1968, p. 31 ou 2002, p. 456). Esta animalização do colonizado
é, para Fanon, a expressão mais eloquente de uma violência absoluta que desenraíza o
aviltado de sua humanidade. E para reforçar a sua criatividade narcisista e alimentar o seu
instinto nihilista, o colono via-se na necessidade de encontrar novos atributos que
pudessem explicitar, da melhor maneira possível, a real dimensão semântica subjacente
nos conceitos de “indígena e selvagem” que, em si, já não eram suficientes para exprimir
a mesquinhez que representavam os selvagens negros de África, entre outros:
demografia galopante, massas histéricas, rostos de onde fugiu qualquer
traço de humanidade, corpos obesos que não se assemelham mais a
nada, corte sem cabeça nem cauda, crianças que dão a impressão de não
pertencerem a ninguém, preguiça estendida ao sol, ritmo vegetal…
(Fanon, 1968, p. 32 ou Fanon, 2002, p.457)
A validade histórica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento: É
sensato falar de um projecto de civilização de animais sem converter a própria
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racionalidade civilizadora numa irracionalidade animal? Para tentar justificar a paradoxal
irracionalidade animal de uma civilização cuja racionalidade é o epicentro da sua acção,
muitos preferiram considerar as afirmações de Fanon de irresponsáveis e repletas de
inverdades, qualificando o próprio Fanon de agitador e instigador da violência, ante a sua
incisiva caracterização do sistema colonial. Dentre outros, podemos citar Alain
Finkierkraut, cujo pensamento, mais do que uma antítese às teses de Fanon, é uma
tentativa de demonstração da derrota do projecto da descolonização; Pièrre Bourdieu, de
quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que pesam sobre Fanon, é
paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010, p. 109), como um dos autores
que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus, Simone de Beauvoir, Germaine
Tillion, Jasques Amrouche e outros que, como Fanon e Sartre, tiveram a ousadia de
denunciar, cada um à sua maneira, a violência inerente ao sistema colonial, forjando
novas noções de identidade política que continuam a influenciar o debate político na
actualidade.
No seu “marxismo encontra Bourdieu”, Burawoy procura mostrar que, apesar da enorme
distância que separa o quadro teórico-reflexivo de Bourdieu e Fanon, nomeadamente “o
marxismo terceiro-mundista, de um lado, e a teoria da modernização, de outro lado”, o
pensamento destes dois autores apresenta inúmeras similitudes, sobretudo, entre o Fanon
do Le Damnés de la terre, de 1961, e o Bourdieu de Sociologie de l’Algerie, de 1958.
Embora não seja objecto deste debate, julgamos oportuno e procedente mencionar, a título
de exemplo, algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violência como uma das
características intrínsecas à natureza própria do sistema colonial e nos termos muito
semelhantes aqueles que aparecem nas páginas 26 e 30 do Le Damnés de la terre, de
Fanon (cfr. 1968), ao afirmar:
o sistema colonial, enquanto tal, não poderá ser destruído senão através
de um questionamento radical. Todas as mutações são submetidas à lei
de tudo ou nada. Este facto está na consciência, pelo menos, de forma
confusa, quer entre os membros da sociedade dominante, quer entre os
membros da sociedade dominada […] Mas é preciso admitir que o
primeiro e único questionamento radical do sistema é aquele que o
próprio sistema engendrou, isto é, a revolução contra os princípios que
o fundaram […] A situação colonial criou o desprezível e ao mesmo
tempo o desprezo; mas criou, também, a revolta contra o desprezo.
Assim, cresce, cada vez mais, a tensão que divide a sociedade no seu
conjunto (Bourdieu, 1958, pp. 28 e 129).
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Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu, numa clara aproximação
da colonização à violência. De facto, a violência simbólica e real é depreendida em muitos
cenários e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial.
Vários são os etnólogos e ideólogos que, nas entrelinhas do seu pensamento, conferem
uma certa razão a um tal pressuposto. Alfred de Vigny, por exemplo, faz jus a esta
violência simbólica ao afirmar, sem rodeios, que o mundo não europeu é um mundo
animal, mundo dos bárbaros, mundo da morte e, consequentemente, uma ameaça ao
mundo europeu. Partindo deste postulado, deduz-se que, para De Vigny, a colonização
era um processo compulsivo de civilização, isto é, uma opção para a vida e, tal como diz
“se se prefere a vida à morte, tem de se preferir a civilização à barbaridade”, que não é
apenas um reino animal e de morte, mas, também, uma ameaça à civilização. Em virtude
disto, conclui De Vigny, “nenhum povo tem o direito de permanecer bárbaro ao lado das
nações civilizadas”. Depreende-se daqui que a única lógica válida é a disjuntiva, “to be
or not to be”, como diria Shakespeare, “that is the question” (cfr. De Vigny, 2003, p.87).
Esta apreciação lacónica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que, como
De Vigny, também considera a colonização como uma obra civilizadora, uma espécie de
direito e dever das sociedades evoluídas. Folliet baseia o seu argumento nas
características heterogéneas das sociedades, isto é, nos desníveis existentes entre as
sociedades colonizadas e colonizadoras, quer nos planos económico, administrativo,
cultural, social e político, quer nos planos científico e tecnológico. Daqui resulta o
entendimento segundo o qual a colonização seria, possivelmente, o processo de supressão
destes desníveis sociais, com o auxílio das sociedades mais desenvolvidas. Pelo que a
manutenção destes desníveis, como forma hegemónica de controlo ou de manutenção de
superioridade, foge do âmbito da colonização para desembocar no campo de acção do
colonialismo (cfr. Folliet, 1932, p. 75). É caso para dizer que o entendimento teórico de
Folliet apresenta uma diferença nítida entre a colonização que seria, para o autor, o
sinónimo de civilização e o colonialismo que pode ser visto como processo de exploração
e subjugação das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades desenvolvidas.
Mas é preciso dizer que, se do ponto de vista conceitual, Folliet deu um tamanho salto
qualitativo, propiciador de uma possível coabitação pacífica entre o colono e o
colonizador, aludindo à missão civilizadora da colonização, do ponto de vista prático, o
discurso follietiano deu lugar a muitas ambiguidades; sobretudo, quando o próprio autor
considera a colonização como forma mais viável de se tirar o melhor proveito dos
recursos naturais mal parados em territórios subdesenvolvidos e valorizá-los para o bem-
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comum da humanidade, sem definir as regras, nem as modalidades ou os vínculos
contractuais para tal. Com efeito, Folliet considera um dado assente que “as nações
economicamente mais evoluídas têm o direito de explorar as riquezas ignoradas ou
desprezadas pelos povos selvagens” (Folliet, 1932, pp. 101 e 268). E para não camuflar a
sua veia colonial consubstanciada no instinto de violência, Folliet defende a necessidade
da manutenção das desigualdades entre o colonizador e o colonizado, numa clara opção
pelo colonialismo em detrimento da colonização, contrariando a sua própria doutrina,
com o seguinte posicionamento:
a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores, de modo que o
sujeito colonizado não passe, numa vontade de vingança, a esquecer a
sua heteronomia absoluta; é, portanto, útil e necessário que as mais
vastas propriedades, as mais ricas indústrias, os mais frutuosos
comércios pertençam aos representantes da raça superior (Folliet, 1932,
p.228).
Uma possível dedução leva-nos, por um lado, a aferir a inadequação da equação de partida
com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analíticos da questão
em estudo e a considerar, por outro lado, a emergência da categoria de dominação como
outro elemento característico da estratégia colonial na relação colonizado/colonizador.
Este princípio que é, em si mesmo, o elemento estruturante da tensão e, ao mesmo tempo,
provocador da dialéctica do senhor e do escravo, permite-nos um salto para o exame da
possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a África em proveito
dos africanos.
5. A colonização como projecto de modernização de África: clarividência ou
equívoco?
É possível compatibilizar o instinto de dominação com a vontade de promover ou de
emancipar? Guillaume Suréna, num movimento contrário ao nosso itinerário, apresenta
um discurso capaz de relançar a discussão. No seu artigo intitulado “Psycanalyse et
anticolonialisme”, Suréna lamenta o desperdício de uma oportunidade que teria resultado
num possível encontro inter-civilizacional frutífero, e que, no entanto, terá sido frustrado
pela vontade dominadora do instinto colonial. Os textos surenianos insinuam que, do
ponto de vista prático, a civilização europeia nunca teve qualquer plano de promover,
nem de reconhecer as outras civilizações como parceiras importantes para um
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crescimento conjunto. A sua ambição foi sempre de conhecer para dominar e subjugar,
como ficou explicitado nesta passagem:
este encontro de civilizações tão diferentes poderia ter sido o momento
de um intercâmbio fecundo e de um enriquecimento mútuo, como
lamentou o antropólogo francês Claude Levi-Strauss. Mas para a
metafísica europeia, desde a Grécia antiga, o saber foi sempre o
equivalente de “maitriser”, isto é, de dominar. As coisas e os animais
foram desbatizados para serem mutilados sob os conceitos com
partículas latinas e gregas. Os locais geográficos receberam nomes que
evocam a velha Europa e que os tornam ridículos por falta de qualquer
relação com os espíritos que os habitavam outrora (Suréna, 1943, p. 4).
Diga-se, pois, de passagem, que foi assim na Grécia antiga, foi assim até ao século XX,
e nada justifica que não continue assim nos dias que hão-de vir. Mas a questão é: qual o
destino que o instinto dominador das nações pode proporcionar à espécie humana?
Convém recordar que, num passado mais recente da história da Europa, a colonização
assumiu o carácter de dominação dos povos e dos seus recursos naturais. Os europeus
sempre mostraram-se mais interessados com uma partenogénese profunda dos africanos
para os submeter mais facilmente e não para os civilizar. De facto, desde o início do
século XVII, com as grandes navegações e os descobrimentos das américas, o interesse
em explorar e conquistar novas terras ganhou um enorme vigor na Europa e, com ele,
emergiu também a chamada colonização de exploração e de povoamento. A primeira
forma de colonização foi o momento no qual prevaleceram os interesses mercantis no
quadro em que as colónias tinham uma utilidade meramente lucrativa junto da metrópole.
A segunda acontecia de maneira espontânea, mas tendo como factor motivacional o
surgimento de uma actividade económica com garantias de melhorar a qualidade de vida
de quem aí acorria.
Muitos estudos mostram que, no continente africano, este tipo de colonização foi sempre
acompanhado de desterramento de zonas aráveis ou de pastagem dos autóctones, bem
como da supressão dos eventuais direitos que detinham
1
. Embora referindo-se a um
contexto muito mais pretérito ao de Fanon, Césaire, Sartre e outros, Iva Cabral traz ao de
cima a ideia de dominação e de exploração como elementos catalisadores do interesse
europeu em África, ajudando, assim, na desconstrução da hipótese de um possível plano
colonial para o desenvolvimento de África e dos africanos. De facto, Iva Cabral afirma
1
Cfr. https://pt.wikipedia.og/wiki/colonização. Enciclopédia livre, 15/02/2017
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que a experiência ultramarina se resumia na conquista das praças do Norte de África e na
fixação de guarnições e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos
territórios tropicais de África, não pelo desejo de levar a civilização às terras longínquas
de África, mas por causa dos inúmeros privilégios económicos e sociais que tinham, os
quais incluíam, em alguns casos, a sociedade escravocrata de produção no Atlântico (cfr.
2015, p.25).
Este suporte histórico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo
encontra um reforço na posição de Sartre que introduz um outro elemento de enorme
utilidade na nossa análise sobre as categorias de dominação e exploração como
sustentáculos da acção colonizadora, quando, num tom autocrítico, apontando o dedo aos
seus irmãos europeus, pinta, sem complexo nem contemplações, o verdadeiro retrato da
Europa colonial, permitindo a apreensão da razão mais profunda e mobilizadora de toda
a ofensiva opressão contra os autóctones em territórios colonizados, sobretudo em África,
nestes termos:
sabeis muito bem que somos exploradores. Sabeis que nos apoderamos
do ouro e dos metais e, posteriormente, do petróleo dos continentes
novos e que os trouxemos para as velhas metrópoles. Com excelentes
resultados: palácios, catedrais, capitais industriais […] A Europa,
empanturrada de riquezas, concedeu de jure a humanidade a todos os
seus habitantes; entre nós lucramos com a exploração colonial (Fanon,
1968: p. 17).
Se tomamos a sério as diversas constatações dos autores supra mencionados, torna-se
insustentável a hipótese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos
africanos e da África, num contexto de exploração no seu sentido mais radical e mais
bruto do termo, isto é, uma exploração não só de recursos naturais dos territórios
colonizados, mas também do seu próprio capital humano. Num tal contexto, aproximar a
colonização da civilização é admitir, à partida, uma ambiguidade semântica na
compreensão destes dois conceitos. Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade, Césaire
diz que a colonização não deve ser confundida com uma empresa filantrópica, nem com
uma nobre vontade de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tirania e, até
mesmo, da propagação de Deus e, muito menos, com uma política de extensão dos
direitos do povo colonizado, como pretendeu o pedantismo cristão, que concebeu o
referido equívoco, ao enunciar uma equação ética e religiosamente desonesta e
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politicamente pretensiosa: cristianismo igual a civilização e paganismo igual a
selvajaria, tornando-se, assim, responsável pelas consequências abomináveis decorrentes
dos actos coloniais, cujas vítimas seriam os índios, os amarelos e os negros (cfr. Césaire,
1978, pp.14-15).
Pode se depreender dos textos de Césaire que a colonização é a manifestação, sem
precedente, da ganância do aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do
pesquisador de ouro e do mercado, do apetite e da força, tendo por detrás a sombra
maléfica projetada de uma forma de civilização que, a dado momento da sua história, se
viu obrigada, internamente, a alargar à escala mundial a concorrência das suas economias.
Se não, como se pode perceber que a França, em particular, e a Europa, em geral,
conseguissem, progressivamente, tal como alude Dino Constantini, transformar os
princípios democráticos e humanistas, tão-reclamados naquela circunscrição do globo,
em instrumentos de justificação de dominação, com regulares violações, nas colónias,
dando lugar a uma degeneração sem precedente de uma suposta “missão civilizadora” da
Europa em África (cfr. Constatini, 2008, pp. 33 e 53)? Para pôr a nu o paradoxo de uma
civilização dita humanista, mas, na prática, contestadora da própria humanidade no
“diferente”, Constatini evoca o código civil de 1791, que coloca as colónias fora do direito
comum, institucionalizando uma cisão social, juridicamente fundamentada, entre as
populações brancas e negras, legitimando, ao mesmo tempo, a violência, primeiro, no
plano simbólico e, posteriormente no plano concreto, numa clara declaração de recusa de
reconhecimento e de integração dos negros na vida da metrópole. É preciso dizer que esta
fragmentação social, legitimada pelo código civil supra citado, serviu de base para a
consagração de uma nova compreensão do conceito da “humanidade” que reduziria os
direitos humanos a direitos de cidadania, reservando-os apenas aos europeus.
É o paradoxo, no caso da França, de uma República que nunca deixou de contestar contra
a violência de que tinha sido vítima em 1871, cegamente transformada numa autêntica
máquina de violência contra outros humanos, sem qualquer fundamento legítimo (cfr.
Constatini, 2008, p. 286). É a contradição de uma civilização ocidental defensora de
direitos humanos, mas que não hesita de reduzir os outros humanos à categoria de sub-
humanos; é a estratégia de um imaginário ideológico que, no plano psicológico, confere
legitimidade a todas as barbáries dos colonizadores sobre os colonizados; é a ironia de
uma civilização cuja linha de demarcação com a barbaridade não é explícita. Nem mesmo
a dignidade humana, universal e abstracta, apregoada pelos moralistas desta civilização,
como um dos valores mais sublimes entre os humanos, em especial, pela religião cristã,
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mais consagrada ao serviço do imperialismo do que de Deus, na óptica de Césaire,
conseguiu dissimular a violência contra o colonizado.
6. Desmistificando o mito de uma civilização humanista erguida na recusa do
“diferente”
Parece ter ficado evidente que a colonização se identificou mais com uma dinâmica de
exploração dos povos colonizados do que com um projecto de integração dos indígenas
na metrópole. Iva Cabral ajuda-nos, mais uma vez, a perceber como a lógica do lucro
presidiu a todas as estratégias e legislações coloniais. Numa perspectiva simplesmente
histórica, a autora apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade
a muitos dos enunciados de Fanon que concedem sentido e substância a este trabalho.
Com efeito, Iva Cabral afirma que as decisões políticas do regime colonial criavam
condições para que os filhos da média e baixa nobreza portuguesa, neste particular,
mercadores e aventureiros vislumbrassem no território recém-descoberto uma
oportunidade e um trampolim para o vasto mercado africano cujo acesso se abria na costa
ocidental do continente e para os lucros que as mercadorias, dadvindas, poderiam trazer
(cfr. Cabral, 2015, p.27).
É lógico conjecturar que, num tal jogo de lucro fácil, que não podia não contar com os
recursos naturais e com o capital humano africanos, como meios ideais para minimizar
os custos e maximizar os lucros, a preocupação pela integração dos africanos no clube
dos evoluídos e emancipados seria uma espécie de atentado ao espírito de negócio. Este
postulado encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza
a atitude da recusa do “outro” o diferente, feito uma ameaça para o “nós”
ideologicamente construído e consagrado como o único paradigma possível de
humanidade na seguinte declaração:
havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus
que se recusaram, no século de Colombo, em reconhecer seus
semelhantes, homens degradados que povoavam o novo mundo […]
Era impossível fixar um instante do olhar no selvagem sem ler o
anátema escrito, não digo somente na sua alma, mas, até na forma
exterior do seu corpo (De Maistre, Joseph, Apud. Césaire, 1978, p. 33).
Esta declaração deixa transparecer uma inferência lógica quase irrefutável de que o
referido anátema dos indígenas não se consumou ao extermínio, na perspectiva do
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colono, por razões de índole puramente utilitarista, como se depreende nesta passagem
do já citado autor nesta transcrição de Césaire:
sob o ponto de vista de selecção, consideraria deplorável o
desenvolvimento numérico […] dos elementos amarelos e negros, que
seriam de eliminação difícil. Se, todavia, a sociedade futura se organizar
numa base dualista, com uma classe dolico-loira dirigente e uma classe
de raça inferior confiada à mais grosseira mão-de-obra, é possível que
este último papel incumba aos elementos amarelos e negros. Neste caso,
aliás, não seria um embaraço, mas uma vantagem para os dolico-loiros
(De Maistre, Joseph, Apud. Césaire, 1978, p. 33).
Fica desvendado, nestes dizeres do De Maistre, o retrato do narcismo nihilista de muitos
artistas da europa colonial, consubstanciado na ideia e na pretensão de uma raça superior
que se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contágio. É o drama de uma
Europa feita refém pelo seu próprio mito de pureza civilizacional uniracial; um mito
enganoso, pretensioso e pernicioso que põe em causa a aspiração de uma política
enquanto exigência de construção de uma comunidade humana na qual a consciência da
diversidade dos humanos e a necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam
uma condição “sine qua non” da prosperidade e da sobrevivência da própria espécie
humana. Lamentavelmente, este entendimento da política como espaço intermediário
onde se joga a liberdade e interacção dos humanos, enquanto seres iguais e autónomos é,
constantemente, posto em causa, como diz Martha Nussbaum, pelos apologistas deste
mito que, em todas as sociedades, alimentam uma falsa convicção de pureza etnocêntrica
ou “classecêntrica”, geradora de violência contra os excluídos (cfr. Nussbaum, 2010, p.
48), comprometendo a possibilidade de fazer da política o lugar por excelência da
profundidade humana.
Para compreender as mais profundas motivações que levam os indivíduos a um tal instinto
nihilista, Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi, que examina a possível
conexão existente entre os domínios psicológico e político. Com efeito, Gandhi concluíra
que os desejos gananciosos, o instinto de agressão e a ansiedade narcisista são empecilhos
para a edificação de uma verdadeira civilização humana. Pelo que a luta política pela
construção de uma civilização humana, assente nos pilares da liberdade, empatia e
igualdade deve ser precedida de uma luta contra o medo do outro, a ganância e o instinto
de agressão narcisista intrínsecos em cada indivíduo (cfr. Nussbaum, 2010, pp. 48-50). E
se partimos da hipótese de que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam
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multidões ao ódio, ao genocídio e à instrumentalização dos “outros”, tidos como da raça
inferior ou sub-humana, ocorre mais em contextos de pouca capacidade crítica ou de uma
intelectualidade materialista ou “ventríloque”, usando a expressão de Fabien Eboussi
Boulaga, isto é, de uma intelectualidade corrupta, desprovida de princípios éticos e
humanistas, forçoso é concluir que por mais que a Europa colonial quisesse apostar num
projeto de civilização dos africanos, não teria condições efectivas de o fazer ante a sua
ganância e arrogância eurocentristas, encorajadas por uma jactância ostensiva feito
veneno, instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do lucro cuja
solidificação se com o asselvajamento dos africanos, em geral, e dos negros, em
particular.
É, precisamente, este instinto egoísta e materialista que transparece na maneira como
Ernest Renan concebe o colonialismo. Para ele, o colonialismo é uma necessidade política
de primeira ordem, é a conquista de um país de raça inferior pela raça superior que se
instala na colónia através de um governo. Trata-se, na perspectiva deste autor, de algo de
extrema normalidade que nada tem de chocante. A colonização só se torna chocante se, e
somente se, as conquistas forem entre raças iguais. Assim, se, por um lado, estas
conquistas devem ser desencorajadas e censuradas entre raças iguais, elas devem ser
encorajadas entre as raças desiguais, porque a regeneração ou degeneração de raças
inferiores pelas raças superiores deve estar na ordem providencial da humanidade.
“Regere imperio populos”, eis a nossa vocação. A natureza criou uma raça de
trabalhadores industriais é a raça chinesa, uma de jornaleiros agrícolas é a raça negra
[…], uma raça de senhores e de soldados é raça europeia”. Nesta óptica, a redução desta
nobre raça à classe trabalhadora, em condições degradantes, como as dos negros e dos
chineses, gera revolta (cfr. Renan, 1967, pp. 69-70). O mais perplexo em tudo isso é que
Renan, numa enorme ousadia intelectual, não se tenha inibido do seu instinto de
superioridade racial, ao defender, de forma paradoxal, numa obra intitulada “La Réforme
Intellectuelle et Morale de la France”, a seguinte convicção:
nós esperamos não a igualdade, mas sim a dominação. O país de raça
estrangeira deverá voltar a ser um país de servos, de jornaleiros
agrícolas ou de trabalhadores industriais. Não se trata de suprimir as
desigualdades entre os homens, mas de as ampliar e as converter em lei
(Renan, 1967, p.69-70).
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Uma visão demasiado materialista e narcisista que mereceu, num tom irónico, a crítica de
Césaire que qualifica o colono muito distinto, muito humanista e muito cristão do século
XX como uma autêntica encarnação de Hitler. É o retrato do colono que traz em si,
segundo Césaire, “um Hitler que se ignora, que vive nele e que é o seu demónio e se o
vitupera é por falta de lógica ou pelo instinto de afinidade racial, pois os factos atestam
que o que muitos deles não perdoam a Hitler não é o crime em si, nem tão-pouco o crime
contra a humanidade, mas o crime contra o homem branco, a humilhação do homem
branco”. Assim, não restam dúvidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento
socio-histórico, a colonização é uma suprema barbárie, um nazismo pouco expressivo por
ser aplicado aos negros e aos árabes de África. Mas, na sua essência, um tal narcisismo
constitui a negação mais eloquente do humanismo universal e formal, reivindicado por
Fanon e, ao mesmo tempo, uma clara renúncia dos ideais filosóficos, morais e cristãos de
uma civilização decaída (cfr. Césaire, 1978, pp. 18-19).
Está, assim, denunciada a patologia de uma civilização que fundou a sua filosofia de
acção na estigmatização do “diferente” e na fragmentação do mundo em puro e impuro.
É a construção patológica, usando a expressão da Nussbaum, de um “nós” que se julga
imaculado e de um “eles” preconceitualmente denotado vil, perigoso e contagioso. Esta
denunciada patologia obriga-nos a retomar algumas das questões supra referenciadas, tais
como: é possível pensar a missão civilizadora da Europa colonial num contexto de clara
recusa da alteridade ou de reconhecimento do africano como sujeito autónomo, dotado de
razão e de humanidade? Como compreender uma missão civilizadora assente numa lógica
social do segundo excluído, isto é, numa lógica social fracturante e nihilista? Será que
África, ao engajar-se na luta pela descolonização, terá, efectivamente, recusado o projecto
de desenvolvimento que configurava a missão civilizadora da potência colonial? Vamos
no próximo ponto tentar encontrar alguns elementos de resposta a estes questionamentos,
em certa medida, já respondidos.
7. A compartimentação maniqueísta, uma antítese à pretensão colonial da
emancipação da África dos africanos
A compartimentação maniqueísta da sociedade, ou seja, a bipolarização social assente no
princípio da desigualdade entre as cidades dos homens, isto é, dos europeus e os bairros
indígenas ou dos selvagens, categorias sociais criadas pelo próprio colono, contradiz, à
partida, qualquer pretensão colonial de reconhecimento e integração da África e dos
africanos no universalismo humano (cfr. Fanon, 1968, p. 27 ou 2002, p. 453). Aliás, a
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estrutura social montada pelo colono determinava, “a priori” que as relações entre os
habitantes dos dois mundos fossem de exploradores e explorados, dominadores e
dominados, opressores e oprimidos, superiores e inferiores, homens e sub-homens.
Convém, no entanto, sublinhar que toda a violência colonial tinha como grande propósito
a criação de um ambiente de medo e inibição do colonizado no intuito de facilitar a
dinamização da exploração e a pilhagem de recursos naturais num contexto inovador de
mercantilismo que muito precisava do concurso forçado dos próprios indígenas. Para dar
conta do dinamismo interno de uma tal compartimentação maniqueísta Fanon, escreve:
em sua zona, o colono põe em marcha o movimento de dominação, de
exploração e de pilhagem. Na outra zona, a coisa colonizada, oprimida
e espoliada alimenta, como pode, esse movimento […] as matérias-
primas vão e vêm, legitimando a presença do colono. Enquanto o
acocorado, mais morto do que vivo, o colonizado, se eterniza num
sonho […], o colono faz história. Sua vida é uma epopeia, uma odisseia
(Fanon, 1968, p. 38 ou 2002, p. 463).
Como se pode depreender, mais uma vez, este maniqueísmo é, em si mesmo, uma antítese
de qualquer projecto civilizador, não só pelo facto de se constituir num factor provocador
de desprezo e ignomínia dos colonizados, mas também e sobretudo, por ser um factor
desestabilizador, suscitador de ódio e de violência entre os habitantes das duas zonas.
Cônscio desta tensão latente e subjacente a esta configuração geopolítica opressiva, o
colono interpôs, como deduz Fanon, uma estrutura fronteiriça forte e intimidatória capaz
de assegurar a atmosfera de submissão e de inibição dos explorados, tal como se pode ler:
o mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a
fronteira, é indicada pelos quarteis e delegacias de polícia. Nas colónias
o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono
e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado. Nas sociedades
capitalistas, o ensino religioso ou leigo, a formação de reflexos morais
[…] criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e
inibição que torna consideravelmente mais leve a tarefa das forças da
ordem […] O intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura
violência […] não torna mais leve a opressão, não dissimula a
dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da
ordem […] leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado (Fanon,
1968, p. 28 ou Fanon, 2002, pp. 453-454).
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Este e outros cenários permitem situar a originalidade do instinto colonial no princípio de
diferenciação ontológica e social e no de desigualdade económica entre duas espécies: a
branca e a negra ou árabe, pois, a patologia narcisista de superioridade racial estruturou,
no imaginário individual e colectivo do colonizador, a convicção de que ser branco
significa ser superior e, consequentemente, rico; e ser negro ou árabe africano é o oposto
disto (cfr. Fanon, 1968, p. 29 ou Fanon, 2002, p. 455). Este maniqueísmo que toma
balanço no plano simbólico no qual o branco remete à noção do bem, do belo e do bom e
o negro o seu oposto, desembarca no plano concreto, com reflexos inofuscáveis, na
configuração geográfica da estrutura social montada pelo regime colonial. A cidade do
colono é uma cidade vida, enquanto no bairro do colonizado se sobrevive
milagrosamente; a cidade do colono é segura, mas no bairro indígena a insegurança é o
próprio cartão-de-visita; a cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro,
iluminada, asfaltada, as ruas limpas, lisas, sem buracos, mas o bairro indígena é o oposto
disso. Na cidade do colono, os habitantes estão permanentemente saciados e repletos de
boas coisas. Em contrapartida, o bairro indígena ou negro é um lugar mal-afamado e
povoado, é o bairro de homens mal-afamados; aí, nasce-se, não importa como, nem onde
e morre-se não importa a onde, nem de quê. É um mundo sem intervalos, ou seja, os
homens estão uns sobre os outros, é o mundo dos famintos, dos analfabetos e dos doentes
e indigentes (cfr. Fanon, 1968, p. 28-29 ou Fanon, 2002, pp. 453-454).
O mundo colonial, diz Fanon, forjou um povo sem alma e sem referência originárias. O
colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos árabes
de África. Fez deles uma espécie de quintessência do mal, considerando-os como seres
impermeáveis à moral e à ética; com ausência e negação de valores; mal absoluto,
elementos corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles; elementos
deformadores que desfiguram tudo o que se refere à estética ou à moral; depositários de
forças cegas. (cfr. Fanon, 1968, p. 31 ou Fanon, 2002, p. 456). Esta convicção levou M.
Meyer a afirmar, em plena Assembleia Nacional Francesa, que:
[…] não era necessário prostituir a República fazendo penetrar nela o
povo argelino. Os valores, com efeito, se tornam irreversivelmente
envenenados e pervertidos desde que entram em contacto com a
população colonizada. Os costumes do colonizado, suas tradições, […]
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sobretudo seus mitos, são a própria marca desta indigência, desta
depravação constitucional (Fanon, 1968, p.31 ou Fanon, 2002, p. 456).
Este discurso forjado no seu espaço existencial, levou Césaire (1978, p.17) à conclusão
de que a Europa colonial se esmerou, antes de mais, em descivilizar: primeiro o próprio
colonizador, embrutecê-lo, degradá-lo, desper-lo para os instintos ocultos, para a
cobiça, para a violência, para o ódio racial e para o relativismo moral e, posteriormente,
descivilizar o colonizado. Todo este quadro legitima, sobremaneira, o anseio dos
africanos pela liberdade e pelo reconhecimento da sua dignidade. Para desmascarar o
argumento segundo o qual o engajamento dos africanos na luta pela descolonização de
África terá sido uma espécie de recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos
africanos, Césaire passa em revista, e em jeito de balanço, o vasto fresco dos horrores da
dominação colonial, em particular a francesa, em África, deixando claro que nenhum
desenvolvimento vale mais do que a dignidade humana e o respeito pelos direitos e
liberdades fundamentais dos povos. Apoiando o seu raciocínio nos factos. Com efeito,
Césaire afirma que a equação mais ajustada à realidade vivida é colonização igual
coisificação e não desenvolvimento, porque, no fim de contas, o fiel da balança pende
mais para prejuízos do que para ganhos, tal como consta do longo extrato que extraímos
do texto de Césaire:
falam-me de progressos, de realizações, de doenças curadas, de níveis
de vida elevados acima de si próprios; eu falo de sociedades esvaziadas
de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de
terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências
artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas.
Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de
canais, de caminhos-de-ferro; mas eu falo de milhares de homens
sacrificados no Congo-Oceano, falo dos que, no momento em que
escrevo, cavam à mão o porto de Abidjan; falo de milhões de homens
arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à
dança, à sabedoria; falo de milhões de homens a quem inculcaram
sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a
genuflexão, o desespero, o servilismo. Laçam-me em cheio aos olhos
toneladas de algodão ou cacau exportado, hectares de oliveiras ou de
vinha plantadas, mas eu falo de economias naturais, de economias
harmoniosas e viáveis, de economias adaptadas à condição do homem
indígena desorganizadas, de culturas de subsistências destruídas, de
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subalimentação instalada, de desenvolvimento agrícola orientada
unicamente para benefício das metrópoles, de rapinas de produtos, de
rapinas de matérias-primas. Ufanam-se de abusos suprimidos, eu
também falo de abusos, mas para dizer que aos antigos muito reais
sobrepuseram outros muito detestáveis. Falam-me de tiranos locais
trazidos à razão, porém constato que, regra geral, eles fazem muito boa
parelha com os novos e que, destes aos antigos e vice-versa, se
estabeleceu, em detrimento dos povos, um circuito de bons serviços e
cumplicidade. Falam-me de civilização, eu falo de proletarização e de
mistificação […] Cada dia que passa, cada negação de justiça, cada
carga policial, cada reclamação operária afogada em sangue, cada
escândalo abafado, cada expedição punitiva, cada polícia e cada
miliciano fazem-nos sentir o preço das nossas velhas sociedades”
(Césaire, 1978, pp.25-26)
Disso decorre que a essência do colonialismo, tal como realçou Mário Pinto de Andrade,
reside em dois aspectos: no “regime de exploração desenfreada de imensas massas
humanas, que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violência” e na “forma
moderna de pilhagem” (cfr. Césaire, Aimé, 1978, p.7). Assim, se os níveis científicos,
tecnológicos e organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem, a todos os
títulos, um estatuto de uma civilização, o mesmo não se do ponto de vista da sua
relação com as colónias. Por esta razão, Césaire chamou-lhe de civilização decadente,
enferma e mórbida, por se ter revelado incapaz de resolver os grandes problemas que
criou, nomeadamente, o do proletariado e o colonial. Ouçamos Césaire a respeito:
“uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o
seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente. Uma
civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais
cruciais, é uma civilização enferma. Uma civilização que trapaceia com
os seus princípios é uma civilização mórbida” (Césaire, 1978, p.13).
Terão Fanon, Césaire, Sartre e outros exagerado na sua crítica do colonialismo?
Possivelmente sim. Contudo, a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos
atribuir uma certa objectividade e verdade histórica a muitos dos enunciados que nos são
dados a apreciar. René Grousset (1954, p. 76), quase duas décadas antes de Césaire,
analisando o percurso evolutivo das civilizações, constatava que nenhuma civilização
apareceu, logo no início, tão promissora e tão ameaçada como a civilização ocidental. A
sua ameaça, em seu entender, não vem apenas da espada nuclear, vem, também e
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sobretudo, do egoísmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam. Está,
portanto, evidente que o regime colonial europeu foi, essencialmente, uma conquista
assente em fins de exploração dos indígenas. Esta ideia césairiana de uma Europa
exploradora, no sentido açambarcador do termo, aparece também no Le génocide”, no
qual Jean-Paul Sartre é perentório em afirmar que a colonização não é uma mera
conquista, como foi a anexação de Alsace-Lorraine, pela Alemanha; na sua verdadeira
natureza, a colonização é um acto de genocídio cultural. Numa “démarche”
fenomenológica, Sartre mostra que a colonização não acontece sem a liquidação
sistemática de todas as características particulares de sociedades nativas e,
simultaneamente, sem a recusa da sua integração massiva na metrópole e sem a negação
do seu acesso às vantagens da metrópole.
Concordamos, assim, com Sartre que a colonização é um sistema de negócio que requer,
inevitavelmente, a existência de um sub-proletariado nacional forçado a trabalhar por
miseráveis salários. Vale dizer que, no sistema colonial, a colónia teve uma função
instrumental, ou seja, foi usada para vender as suas matérias-primas e seus produtos
agrícolas a um preço irrisório à metrópole. Em retorno, a metrópole vendeu os bens
manufaturados às colónias a preço do mercado. Este negócio que contou com a
comparticipação da burguesia nacional condenou os africanos a viverem num submundo
de miséria como negros fantasmas, continuamente recordados da sua condição de sub-
humanos (cfr. Sartre, 1967, p.39).
Está visto que a colonização, partindo da efígie aqui apresentada, é um projecto oposto
aos ideais civilizacionais, tal como alude Césaire ao desmistificar a tentativa de atribuir
ao processo de colonização uma intenção civilizadora. A maldição mais comum nesta
matéria é deixarmo-nos iludir de boa-fé, por uma hipótese colectiva e hábil em enunciar
mal os problemas para melhor justificar as soluções que se lhes aplicam, conferindo,
facilmente, legitimidade a um conjunto de práticas abomináveis, atribuindo-lhes a
categoria de um mal necessário com vista a um fim nobre a civilização dos selvagens.
(Césaire, 1978, p.14).
Conclusão
A reflexão feita nas páginas anteriores permitiu-nos deduzir a existência de uma possível
analogia entre a colonização e a civilização do ponto de vista teórico conceitual. Mas, do
ponto de vista prático, tudo não passou de uma simples ilusão. Uma ilusão cimentada pela
fórmula do pedantismo cristão que procurou atribuir uma presumível missão civilizadora
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ao fenómeno de colonização, ao estabelecer a equação cristianismo igual a civilização e
paganismo igual a selvajaria. A análise mostrou que, do ponto de vista doutrinal e factual,
uma tal equação é insustentável, porquanto a colonização se assumiu mais como violência
contra os povos colonizados e exploração dos seus recursos naturais e da sua força de
trabalho e nunca como projecto colonial de emancipação dos povos colonizados. Esta
conclusão pode ter sido previsível, mas, como foi referido no princípio deste trabalho,
esta análise sobre o colonialismo encontra a sua utilidade neste texto, na medida em que
se nos apresenta como movimento historicizante que constitui a matéria e a forma que
nos permitem vislumbrar o horizonte teleológico da descolonização enquanto proposta
de emergência do novo: nova realidade, novos seres e novo continente; uma espécie de
antítese do mundo colonial.
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